Para ouvir a narração do texto, dê o play.
Existe uma mãe.
Existe uma mãe de três.
Existe uma mãe de três que vejo todos os dias.
Existe uma mãe de três que vejo todos os dias e ela tem cabelo penteado, com uma cor quase loira mas ainda morena, com uma roupa cuidadosamente lavada e um cansaço estampado no seu rosto cujo protagonismo é roubado pelo sorriso que ela nunca deixa de dar.
Existe uma mãe de três sempre sorrindo. E existe eu.

Chego na rua da creche e ela está fazendo o balão no meio do quarteirão, o que todos fazemos. Parecemos ambas atrasadas porque a calçada está vazia e conseguimos parar ali, sem fila, ela e depois eu, que fiz o balão mais adiante.
Ela desce e tira a criança um, a criança dois, ambas com caras de crianças muito amadas. Um come um danoninho, outro vê algo no celular, ambos sentem sono, ela cuida deles com um afeto que às vezes eu não tenho. O terceiro, maior, espera no carro.
Um outro pai que acaba de sair se oferece para ajudá-la. Carrega as duas mochilas para dentro da creche. Eu tento levar um deles comigo porque a mãe tem muitas coisas para carregar. Fecha porta, segura uma criança, salva a outra que sentou no chão com restos de lixo, pede a colaboração de um deles, ou dos dois, um responde mais rápido, outro menos atento, ela tem duas crianças de dois anos, eu tenho uma criança de dois anos, ela se justifica em frases soltas o por quê do celular, o por quê deles não acordarem tão rapidamente de manhã e em seu silêncio sei que ela justifica os motivos da correria, sei que ela escolhe as palavras mais adequadas, embora ela seja doce, é possível ver sua doçura, eu imagino que ela queria mesmo era dar um berro, anda menino, pelo amor de deus, minha criança, anda!
Evito comparações entre seu maternar e o meu. Não conheço sua história, o que sei são construções que eu faço, são repetições de cenas cotidianas que eu assisto. Existe uma mãe de três que eu vejo todos os dias e ela escova os dentes das crianças ainda adormecidas na porta da escola, ela troca a roupa das crianças ali, às vezes, não sempre, ela tira das mãos pequeninas alguma coisa que eles comiam no caminho. Ela tem um carro e ela dirige esse carro e as três crianças vão sempre atrás, uma junto da outra, uma depois da outra e essa mãe está sempre sorrindo.
No início, ela descia a rua arrastando o carrinho dos gêmeos e às vezes o mais velho junto. Ela descia essa rua ouvindo alguma coisa nos fones, alguma leveza que eu me questiono de onde vinha. Um dia eu disse para a professora, o que essa mãe come para ter esse bom humor?
Evito comparações entre ela e eu, mas difícil escapar. Mulheres comuns como ela me intrigam, me fazem querer investigar as entranhas, saber a origem da potência, saber de onde vem tanta resistência.
Não sei sua história, o que faz da vida, onde estão os seus. Suspeito, invento teorias, invento enredos desse dia a dia que eu criei, de uma exaustão impossível de narrar, de uma solidão impossível de capturar, de um abandono.
Abandono de quem.
De uma sociedade que deixa mães carregarem crianças, carrinhos, sacolas, empregos, escovas de dente, sonhos, futuros, matrículas escolares, vacinas, escolhas, justificativas e seus próprios cabelos tingidos de moreno quase loiro.
De uma classe média que gasta muito tempo debatendo se pode o danoninho ou não mas que não se esforça em perceber quanto tempo leva fazer um ovo mexido e comer à mesa e orientar três crianças que insistem em andar com as próprias pernas, além de carregar aquelas coisas e tingir o cabelo.
De um Estado que discursa sobre ajudar mães e mulheres quando o que mães e mulheres precisam não é exatamente de ajuda, é de pessoas que as vejam e que não só as vejam, as enxerguem e as entendam como gestoras de tudo e que merecem não uma fatia do bolo, mas sim 3/4 dele porque ela com certeza vai fazer uma melhor distribuição.
Abandono de mim, que integro essa mesma classe que se culpabiliza conservando uma certa pobreza de espírito e pensando não com neurônios, mas com tendências absurdamente massacrantes e neoliberais que afastam e isolam, enquanto poderíamos de fato fazer laços, aldeias, que fossem condomínios, sejamos mais realistas.
Essa nossa bolha que quer retornar às origens da maternidade natural e não enxerga que não há nada mais antinatural que deixar mulheres à margem, abandonadas. Que não há nada mais artificial que métodos e números e metas para criar crianças.
***
Existe uma mãe de três que vejo todos os dias. Ela deixa duas de suas três crianças na creche. Eu a sigo pela avenida, não propositalmente, mas porque é o meu caminho. Ela para no farol à minha frente. Finjo para mim mesma que não espio. Espio. Ela se vira e penteia o cabelo do mais velho, sentado no meio do banco traseiro. Tento que ela não saiba de mim. Ela não sabe, está ocupada demais sendo ela. Me encanto e me apaixono por essa história que desconheço, mas escrevo aqui.
Tem a ver é a nova seção da Não Dito. Em (quase) toda publicação, vou linkar conteúdos que se conectam com o tema ou inspiraram meu texto.
Women Holding Things é um livro de pinturas da artista Maira Kalman que reúne “uma maravilhosa coleção de palavras e pinturas que é uma meditação comovente sobre a beleza e complexidade da vida e do papel das mulheres, revelados nas coisas que elas seguram.” Em vídeos como esse que circulam nas redes, inspirado nessa obra, conheci esse trabalho profundo e delicado. Abaixo, traduzo livremente o poema narrado.
Mulheres segurando coisas*
O que as mulheres seguram?
A casa e a família e as crianças e a comida.
As amizades e o trabalho. O trabalho do mundo e o trabalho do ser humano.
As memórias e os problemas e os pesares e os triunfos e o amor.
Os homens também o fazem, mas não exatamente da mesma forma.
Às vezes, quando estou me sentindo particularmente feliz ou contente, Eu penso que posso alimentar legiões de seres humanos. Eu posso segurar o mundo inteiro em meus braços.
Em outros momentos, eu mal posso atravessar o cômodo.
E deixo cair os braços. Congelada.
Nunca há um fim para o ato de segurar [sustentar] e certamente existe o sentimento de nunca ser suficiente.
E aí existe o dia seguinte, e o dia seguinte e a gente continuar segurando…
*Tradução livre. Aqui, segurar é e não é apenas o ato direto de carregar objetos. É o ato de sustentar o mundo, como o poema diz.